A letra é um capítulo à parte. Nem todos dão conta de cantar os versos sem tropeçar. Por lei, o Hino Nacional deve ser executado nos colégios do país ao menos uma vez por semana. Na sala de aula, os professores ensinam as crianças a decifrar o significado de “lábaro”, “florão”, “garrida” e outros termos rebuscados.
Documentos antigos guardados no Arquivo do Senado e no Arquivo da Câmara dos Deputados mostram que, por trás do Hino Nacional que o Brasil ouve e canta hoje, existe uma história fascinante e pouco conhecida.
A melodia vem do Império. A épica marcha do Hino Nacional que o Brasil ouve hoje é a mesma que dom Pedro II ouvia nas cerimônias oficiais. Ela foi concebida por volta de 1830, pelo maestro Francisco Manoel da Silva.
— É um hino imponente e cheio de heroísmo, mas é difícil de ser executado. Exige uma destreza muito grande dos instrumentistas — afirma o maestro Claudio Cohen, regente da Orquestra Sinfônica de Brasília.
Os versos atuais, por sua vez, são a terceira versão a acompanhar os acordes de Manoel da Silva. A primeira letra do Hino Nacional tratava da abdicação de dom Pedro I, em 1831. O episódio foi decisivo por ter afastado de vez os portugueses do Brasil e consolidado a Independência. A segunda letra veio em 1841, por ocasião da coroação de dom Pedro II. Os versos exaltavam as qualidades do soberano.
Com o golpe que derrubou o Império, em 1889, o novo governo logo se empenhou em sepultar os legados monárquicos e substituí-los por símbolos nacionais republicanos. Por isso, organizou um concurso público para escolher um novo Hino Nacional.
No meio da competição, porém, houve uma reviravolta. Influenciado por militares e jornalistas, o presidente Deodoro da Fonseca decidiu que o velho Hino Nacional seria mantido — mas só a melodia, sem a letra.
Durante as três primeiras décadas da República, o Hino Nacional foi destinado a ser apenas ouvido, e não cantado.
Nesta quarta-feira, fará 95 anos que isso mudou. Em 6 de setembro de 1922, o presidente Epitácio Pessoa assinou a lei que oficializou os versos pomposos do poeta Joaquim Osório Duque-Estrada — que começam com “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas” — como aqueles que devem acompanhar a melodia composta quase um século antes por Manoel da Silva.
Duque-Estrada compusera a letra havia muito tempo, em 1909. A partir de então, o Senado e a Câmara dos Deputados estudaram diversos projetos de lei que buscavam oficializá-la, mas a divergência entre os parlamentares impediu que as propostas vingassem.
Foi a pressão da chegada das comemorações do centenário da Independência que fez o Congresso aprovar o projeto de lei que Epitácio Pessoa sancionaria na véspera do Sete de Setembro de 95 anos atrás.
— Com o apoio da historiografia, a República fez um esforço tão grande para sacralizar e imortalizar a sua própria versão do Hino Nacional que acabou apagando toda a história da composição e levando a um completo esquecimento do passado — diz o professor de história da música Avelino Romero Pereira, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).
No Império, só cantores líricos conseguiam entoar música
Ao longo do Brasil monárquico, o Hino Nacional teve duas letras diferentes (uma de 1831 e outra de 1841), ambas acompanhando a mesma melodia triunfal que é tocada hoje em dia. As versões do Império, no entanto, não eram feitas para a voz dos súditos comuns. Apenas os cantores profissionais dominavam a técnica para entoá-las.
A razão é que os versos antigos eram bem mais curtos do que os atuais. Experimente, no canto, substituir “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas” por “Os bronzes da tirania” (1831) ou “Quando vens, faustoso dia” (1841). Não dá certo. É preciso fazer um contorcionismo vocal e esticar quase todas as sílabas.
O Hino Nacional que o Brasil canta atualmente não exige grande talento vocal porque cada sílaba se encaixa perfeitamente em sua respectiva nota musical. O canto é quase intuitivo.
No Império, o Hino Nacional só podia ser cantado nos teatros, por artistas que dominassem a técnica de alongar os sons vocálicos e acomodar uma sílaba em mais de uma nota. Assistir à apresentação do Hino Nacional era praticamente o mesmo que assistir a uma ópera.
— A prática operística era cultivada nas cortes de João VI, Pedro I e Pedro II. Os versos do Hino Nacional, portanto, se adaptavam perfeitamente à estética da época — afirma o professor de história da música Avelino Romero Pereira, da UniRio.
"Rio de Abril"
A primeira letra foi redigida pelo poeta e juiz Ovídio Saraiva de Carvalho, em comemoração à abdicação de dom Pedro I, em 1831. Com a renúncia do imperador nascido em solo português em favor de seu filho brasileiro, rompiam-se os últimos e incômodos vínculos que ainda prendiam o Brasil a Portugal.
Os versos do primeiro Hino Nacional eram raivosos no ataque aos portugueses. Na música, eles apareciam como “monstros” que agiam com “tirania” e se alimentavam de “nossas virtudes, nosso ouro”. A letra chegava a propor que o Rio de Janeiro, a capital do Império, passasse a se chamar “Rio de Abril” — referência a 7 de abril, a data da abdicação.
Essa versão foi abandonada em 1841, quando um autor desconhecido compôs a segunda, para celebrar a chegada de dom Pedro II ao trono, após uma década de Regência. Da primeira versão, ele manteve o refrão. A nova letra exagerava na bajulação. O poeta chamava o novo imperador de “ventura do Brasil” e dizia que era impossível “negar de Pedro as virtudes”.
A melodia, que o Brasil jamais abandonou, foi criada pelo maestro Francisco Manoel da Silva. A data da composição instrumental é incerta. Os historiadores dizem que pode ter sido em qualquer momento entre a Independência, em 1822, e a abdicação, em 1831.
Durante boa parte do século 19, Manoel da Silva foi a grande estrela da música brasileira. Eclético, ele produziu de canções sacras a modinhas e lundus (músicas cômicas com letras de duplo sentido). Foi o compositor do Hino Nacional quem musicou o lundu A Marrequinha: “Se dançando à brasileira, / Quebra o corpo a iaiázinha, / Com ela brinca pulando / Sua bela marrequinha”.
Marechal Deodoro fez concurso para trocar hino
Era o finzinho de novembro de 1889 e os brasileiros, que ainda digeriam a expulsão de dom Pedro II e a implantação da República, ocorridas no dia 15, passaram a acompanhar pelos jornais uma emocionante competição nacional organizada pelo Governo Provisório. Músicos do Brasil inteiro foram chamados para propor um novo Hino Nacional.
Os republicanos buscaram eliminar todos os símbolos que remetessem ao antigo regime. A bandeira foi trocada. Ruas, escolas e até mesmo navios de guerra da Marinha ganharam novos nomes. A Estrada de Ferro de Dom Pedro II, por exemplo, virou Estrada de Ferro Central do Brasil.
O concurso era apenas para a melodia. A letra já estava escolhida. Os competidores precisariam criar um acompanhamento para os versos do poeta Medeiros e Albuquerque que diziam “Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós!”. O autor da letra era secretário do Ministério do Interior.
Encerradas as inscrições, registram-se 29 composições. A grande decisão se daria em 20 de janeiro de 1890, no Teatro Lírico, no Rio.
O sepultamento do velho Hino Nacional, porém, encontrava resistências. Intelectuais adeptos do positivismo (filosofia que fazia uso da ciência para explicar o mundo), que tinham forte influência sobre o Exército e o governo, argumentavam que a tradição era importante para definir o presente e o futuro e não poderia ser apagada na marra.
Os críticos musicais, por sua vez, temiam que aparecessem no concurso apenas melodias medíocres, não condizentes com a grandeza da pátria. A maior reação veio do crítico Oscar Guanabarino. Segundo ele, muitas das composições inscritas eram “música de dança”, e o concurso deveria ser cancelado.
“Aqueles hinos atestam a ignorância completa de seus autores em matéria de arte musical, procurando apenas renome adquirido pela adoção de sua frívolas e irrisórias melodias como hino”, escreveu.
Guanabarino defendeu a manutenção do velho Hino Nacional, pois, segundo ele, sua melodia representava o Brasil, e não dom Pedro II ou o Império.
“Apelamos para o chefe do Governo Provisório: — Marechal Deodoro da Fonseca, nos campos do Paraguai, quando, à frente das colunas inimigas, a vossa espada conquistava os louros da vitória e as bandas militares tangiam o Hino Nacional, qual era a ideia, o nome que acudia à vossa mente no instante indescritível do entusiasmo: a pátria ou o imperador?”.
Em 15 de janeiro, nos festejos do segundo mês da Proclamação da República, no Palácio do Itamaraty, sede da Presidência, o ministro da Guerra, Benjamin Constant, atuou como porta-voz dos positivistas e apresentou a Deodoro os argumentos pela conservação do Hino Nacional. Sem resistência, o presidente deixou-se convencer.
Após a decisão, a banda militar que se apresentava no Itamaraty pôs-se a tocar o antigo Hino Nacional com vigor. Aos primeiros acordes, as pessoas que acompanhavam os festejos entraram em pânico e saíram correndo. Achavam que a música era a senha para a deflagração de um contragolpe para derrubar Deodoro e restabelecer a Monarquia.
Era, porém, tarde demais para cancelar o concurso que mobilizava o país. A final ocorreria dentro de cinco dias. A solução foi manter a competição, porém transformando a letra de Medeiros e Albuquerque e a melodia vencedora no Hino da Proclamação da República.
No grande dia, com Deodoro no camarote de honra do Teatro Lírico, o público e o júri escolheram a composição do maestro Leopoldo Miguez. Logo em seguida, o presidente assinou o decreto conservando a velha melodia como o Hino Nacional — mas sem letra.
— Quase foi-se o Hino Nacional. Por um triz que não o perdemos — afirmou o senador Moraes Barros (SP) num discurso no Plenário poucos anos mais tarde, em 1895.
Maestro pressionou adoção do “Ouviram do Ipiranga”
Em novembro de 1906, o maestro Alberto Nepomuceno, diretor do Instituto Nacional de Música, assistiu à cerimônia de posse do presidente Afonso Pena e notou que cada uma das três bandas militares que se apresentaram no Palácio do Catete tocou o Hino Nacional de uma forma diferente. As variações o incomodaram profundamente.
Foi então que Nepomuceno decidiu embrenhar-se pelos arquivos públicos do Rio em busca da partitura original composta no início do Império pelo maestro Francisco Manoel da Silva. Após encontrá-la, ele, como chefe do Instituto Nacional de Música, proporia a norma que deveria guiar a execução instrumental.
Nepomuceno, porém, se deu conta de que poderia ir além. Ele entendeu que era o momento de o Hino Nacional finalmente voltar a ter letra. Desde a Proclamação da República, em 1889, era apenas uma melodia instrumental. Alguns estados tinham letras próprias, improvisadas pela própria população.
Segundo o maestro, era importante para a formação cívica dos estudantes que eles cantassem o Hino Nacional, e não apenas o escutassem sem letra. Ele convenceu Afonso Pena a pedir ao Congresso Nacional que elaborasse e aprovasse um projeto de lei abrindo um concurso público para a escolha dos novos versos, com um prêmio de 2 contos de réis para o vencedor.
A sugestão que o governo enviou ao Congresso continha um modelo de letra, para que os poetas inscritos no concurso conhecessem a extensão esperada de cada verso e soubessem quais deveriam ser as sílabas tônicas, garantindo o casamento perfeito da nova letra com a velha melodia.
“Pequeno golpe”
Para que a ideia vingasse, Nepomuceno acionou dois amigos em 1909: o deputado e escritor Coelho Neto (MA) e o poeta Osório Duque-Estrada. O primeiro apresentou na Câmara uma emenda a um projeto de lei prevendo o concurso. O segundo começou a criar o seu poema, fiel ao modelo métrico elaborado por Nepomuceno e remetido ao Congresso pelo governo.
— Esse hino tem sido companheiro das nossas glórias e vicissitudes e precisa ser cantado por todos os filhos deste grande país. É um hino que canta, mas não fala. É preciso que fale, que saiba traduzir a beleza das nossas mulheres, a pureza do nosso céu, o ruído das nossas cascatas e a impetuosidade do nosso amor — argumentou Coelho Neto.
O relator do projeto, deputado Germano Hasslocher (RS), defendeu a rejeição da emenda. Para ele, a canção nacional não pode ser escolhida por concurso, pois seria artificial:
— Os hinos são músicas acompanhadas de letras interpretativas do sentimento popular. É preciso que em uma e outra haja espontaneidade, o acordo perfeito e completo com o sentimento geral do país. Esse acordo e essa espontaneidade não se encontram com facilidade em uma obra de encomenda. A França abriu sempre concursos para conseguir um hino, mas A Marselhesa, que não foi feita por encomenda, suplantou todos.
A emenda foi rejeitada. Alberto Nepomuceno, no entanto, não se deu por vencido. O diretor do Instituto Nacional de Música ficou tão satisfeito com o poema escrito por Osório Duque-Estrada (“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas...”) que imprimiu várias cópias dele e as enviou para escolas e quartéis de todo o país, para que, mesmo sem ser oficial, começasse a ser aprendida por todos.
— Pode-se dizer que Nepomuceno deu um pequeno golpe, forçando a barra para que a obra de Duque-Estrada caísse no gosto dos brasileiros — explica o historiador Avelino Romero Pereira, professor da UniRio e autor do livro Música, Sociedade e Política: Alberto Nepomuceno e a República musical (ed. UFRJ).
Em 1910, o deputado Coelho Neto apresentou uma nova emenda, dessa vez determinando que os versos de Duque-Estrada fossem os oficiais, uma vez que já vinham sendo cantados pelo Brasil afora, e que, por isso, o poeta seria recompensado com 5 contos de réis. Houve mais discussão na Câmara. Os deputados rejeitaram a oficialização da letra, mas aprovaram o prêmio.
Vários projetos semelhantes passaram pela Câmara e pelo Senado, sempre sendo engavetados. A situação mudou em 1922.
“Poucos meses faltam para as festas do centenário da Independência [em 7 de setembro de 1922], faltando assim, materialmente, tempo para abrir-se um concurso com resultado satisfatório”, informa um documento que está guardado no Arquivo do Senado e foi escrito pelos senadores naquele ano.
O presidente Epitácio Pessoa tinha urgência porque ele havia escolhido a festa da Independência para inaugurar o rádio no Brasil e desejava que o Hino Nacional fosse cantado na primeira transmissão. Por isso, a Câmara e o Senado correram para aprovar tanto a compra da letra — com o governo pagando mais 5 contos de réis a Duque-Estrada — quanto a sua oficialização. Epitácio Pessoa sancionou a lei em 6 de setembro, véspera do centenário.
Ricardo Westin, da Agência Senado